quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Pacificação ainda não pôs fim à homofobia

Homossexuais de comunidades ocupadas acusam PMs de agressão
POR MAHOMED SAIGG, RIO DE JANEIRO

Rio - Perseguidos por sua orientação sexual, nem mesmo os gays, lésbicas e travestis que moram nas favelas ocupadas pela Polícia Militar no Rio de Janeiro estão livres da homofobia. Assim como acontece nas comunidades dominadas pelo tráfico e pela milícia, o preconceito ainda impera nessas regiões. Em todas, eles são obrigados a seguir uma espécie de ‘manual do bom comportamento’, que determina o que podem e o que não podem fazer. Entre as restrições: usar roupas curtas e decotadas, namorar em público e exagerar no consumo de álcool e no uso de maquiagem e acessórios, como brincos e pulseiras. Manter um comportamento discreto também faz parte das exigências.


Vando e Kelly não têm medo de denunciar agressão de PMs no Santa Marta


Cerceados, muitos homossexuais se desesperam. “Não aguento mais tanta repressão. Não consigo mais ser eu mesmo! Antes da ocupação, também tínhamos problemas, mas agora a situação piorou muito, porque com a polícia não tem conversa, estamos sempre errados”, reclama o cabeleireiro Vando Silva, 20 anos. Morador do Morro Santa Marta, em Botafogo, ele garante já ter sido agredido por policiais. “Eles me bateram porque disseram que ‘veado’ tinha que morrer”, denuncia.

Assim como Vando, a travesti Kelly Sanches, 23, também reclama do comportamento dos policiais que ocupam o Santa Marta. “Eles são tão preconceituosos quanto os traficantes. A diferença é que são mais abusados. Aproveitam a ‘autoridade’ que têm para abusar da gente. Principalmente durante as revistas, onde aproveitam para passar a mão na bunda e no peito da gente”, acusa Kelly.

Douglas Ribeiro, 18, é outro gay que garante ter sido espancado por PMs na favela. “Eu ia para uma festa e vi uma briga na descida do morro. Quando os policiais chegaram, os caras já tinham fugido. Aí os policiais vieram pra cima de mim dizendo que a culpa era minha. Eles usaram até cassetete. E, enquanto me batiam, diziam que aquilo era para eu aprender a virar homem”, detalhou Douglas.

Popular entre os moradores do Dona Marta, a comerciante Grazielle Santos, 22, é outra que engrossa a lista de reclamações contra os PMs da Unidade Pacificadora da comunidade. Lésbica, ela diz que o fato de já ter tido várias namoradas irrita alguns PMs que, por ‘ciúmes’, acabam a agredindo por isso.

“Eles ficam me ameaçando dizendo que vão acabar comigo, que eu nunca vou ter o que eles têm, e que não entendem como posso conseguir tantas garotas. Agem como se estivessem com inveja de mim porque saio com meninas em que talvez estejam interessados. Eu me sinto mal com tudo isso. Afinal, eles estão no comando por aqui, e podem fazer o que bem quiserem, né!”, lamenta Grazielle.

RIO SEM HOMOFOBIA

Superintendente de Direitos Individuais, Coletivos e Difusos da Secretaria Estadual de Direitos Humanos, o ativista Cláudio Nascimento lembra que a homofobia está presente em toda a sociedade. Mas admite que, nas favelas, ela é mais violenta do que no asfalto. “Dentro da comunidade LGBT, esse grupo é a ponta de lança dos setores mais excluídos. Além de serem homossexuais, ainda vivem numa situação de exclusão econômica e social, o que os coloca num caldeirão de opressão”.

Na tentativa de acabar com a discriminação e o preconceito no estado, o governo criou uma câmara técnica para elaborar o Programa Rio Sem Homofobia. Reunindo 12 secretarias, ele prevê a criação do ‘Disque Cidadania LGBT’, de Centros Regionais de Referência LGBT, Núcleos de Monitoramento Técnicos de Crimes Homofóbicos e SOS Saúde LGBT, entre outras ações. A previsão é que todas sejam implantadas até 2014.

Associação do morro promete investigar

Presidente da Associação de Moradores do Morro Santa Marta, José Mario Hilário condenou a homofobia na comunidade. “Isso não pode acontecer aqui. Não podemos aceitar que exista preconceito no nosso morro. Temos que garantir a liberdade de gênero”, declarou ele, que prometeu se reunir com os homossexuais da favela para discutir o problema e ouvir queixas.

Comandante da Companhia de Policiamento Comunitário do Morro Santa Marta, a capitã Pricila de Oliveira ficou surpresa com as denúncias de abuso e preconceito contra os policiais. “Nunca recebemos reclamações de abusos ou atitudes homofóbicas cometidas pelos policiais. Todos foram orientados a respeitar os moradores da comunidade”, afirma a oficial. “A opção sexual não aumenta as suspeitas contra nenhum cidadão”, completa a capitã Pricila.

Julgamento severo a quem desrespeita

A punição para quem não segue as rígidas regras impostas por traficantes ou milicianos é pesada. Em alguns casos, fatal. Vítima dessa violência, a transgênera Carla, 39 anos, pagou alto preço por desrespeitar as normas impostas por traficantes do Morro do Dendê, na Ilha do Governador.

Vaidosa, ela conta que sempre gostou de se maquiar e usar roupas curtas e decotadas. “Mas esse meu jeito irritou os traficantes, que mandaram me dar uma surra. Usaram até pedaços de pau. Quebraram meus braços. Só não me mataram porque um taxista ameaçou chamar a polícia”, conta Carla, que traz no corpo as marcas da agressão.

Moradora de uma comunidade controlada pela milícia, na Zona Oeste do Rio, a jovem Denise, 18, que é lésbica, também escapou da morte por pouco. Depois de ter sido ‘descoberta’, ela passou a ser perseguida pelos milicianos. “Esse pesadelo só acabou depois que eu fugi da favela. Mas antes me bateram muito e tentaram estuprar minha namorada”, lembra Denise.

Antiga reivindicação dos militantes LGBT, o projeto de lei que criminaliza a homofobia no Brasil foi aprovado na Câmara dos Deputados, em Brasília, em novembro de 2006. Encaminhado para o Senado Federal, o texto passou pela Comissão de Direitos Humanos, de onde foi encaminhado para a Comissão de Assuntos Sociais em fevereiro de 2007. Apesar do tempo, ele continua parado, sendo analisado pelos senadores.